quarta-feira, 11 de março de 2009

Livrando a Mulher de Jó do Banco dos Réus

Jó e sua esposa (Quadro de Albrecht Dürer - 1471-1528)

"Então sua mulher [de Jó] lhe disse: Ainda retens a tua sinceridade? Amaldiçoa a Deus, e morre". (Jó 2.9 - Almeida, Revista e Corrigida)

Sem dúvida alguma, uma das mulheres mais detestadas de toda a Bíblia (senão a mais detestada) é a mulher de Jó. Embora a Bíblia não mencione o seu nome, a tradição conferiu-lhe o nome de Sitis.[1] Todo este sentimento de aversão a ela se deve ao texto citado acima. Apenas para termos uma pequena idéia sobre como a mulher de Jó foi compreendida pela cristandade, cito Francis Andersen, que faz um curioso comentário a seu respeito:

"Os cristãos de modo geral têm sido mais severos com ela [a mulher de Jó] do que os judeus e os muçulmanos. Ela era a aliada de Satanás. Agostinho chamou-a de diaboli adjutrix; Crisóstomo: 'o melhor flagelo de Satanás'; Calvino: organum Satani. Segundo este ponto de vista, ela tentou seu marido a auto-condenar-se ao conclamá-lo a fazer exatamente aquilo que Satanás predissera que faria".[2]

Já o teólogo Russell Norman Champlin, citando Samuel Terrien, menciona o ponto de vista favorável deste autor francês para com a atitude da esposa de Jó. Eis as suas palavras:

"Samuel Terrien (...) interpreta que a esposa de Jó só estava tentando vê-lo morto e livre de sofrimentos, supondo que uma maldição tivesse o poder de eliminar os sofrimentos dele. Em outras palavras, ela era uma antiga advogada da eutanásia. (...) Ela raciocinava que, se Jó amaldiçoasse a Deus, uma retaliação divina mataria o homem, pondo fim aos seus sofrimentos. (...) Terrien chegou a supor que o ato da mulher de Jó tenha sido inspirado pelo amor, por mais ignorante que tenha parecido ser".[3]

Esses comentários, longe de esclarecerem qual era a verdadeira intenção da esposa de Jó ao dizer aquelas palavras ao seu marido, acabam promovendo mais a polêmica do que uma possível solução em torno do assunto. Mas, afinal, que sentimentos levaram a esposa de Jó a proferir palavras tão duras ao seu marido num dos momentos mais difíceis da sua vida (pois ele já havia perdido seus filhos e seus animais, bem como, na presente situação do texto, até mesmo a própria saúde)? Ora, acredito que pesquisar o que o original diz nesse texto pode nos ajudar a tentar solucionar essa questão. Eis o que diz o texto de forma literal:

"E disse a esposa dele a ele: [você] ainda se mantém firme em sua integridade? Abençoe a Deus e morra".[4]

Talvez, ao ler este verso, você tenha se perguntado: "Espera aí, você traduziu errado! A tradução correta não é: 'abençoe a Deus e morra'?". Bem, quando lemos o original, a palavra que aparece no verso 9 é o verbo hebraico barak, cujos significados básicos são: "ajoelhar, abençoar, louvar, saudar e amaldiçoar (usado de forma eufemística)".[5] Perceba que quatro dos cinco significados básicos deste termo estão associados a aspectos positivos ("ajoelhar, abençoar, louvar, saudar"), enquanto que apenas um significado, e ainda assim usado de maneira eufemística, está relacionado a algo negativo ("amaldiçoar").

Se pesquisarmos a Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento Hebraico, que é datada do III século a.C.) veremos que ela não nos ajuda a decifrar o dilema linguístico que há no hebraico, pois ela apresenta assim Jó 2.9 (de forma bem ampliada):

"Passado muito tempo disse-lhe sua mulher: 'até quando perseverarás dizendo, [1] vede, espero ansiosamente ainda por um pouco de tempo, aguardando a esperança da minha salvação', [2] mas eis que é apagada tua memória da terra, os filhos e filhas do meu ventre; dores de parto e aflição em vão - esgotei-me pelo labor! [3] tu mesmo em podridão de vermes permaneces, passas a noite ao ar livre; [4] e eu, tenho andado errante e pedinte de um lugar a outro, e de casa em casa; tenho esperado o sol - quando ele se porá, para que amenize os labores e aflições que agora me cercam? [5] mas diga uma palavra ao Senhor, e morra!".[6]

Mas então, como podemos entender Jó 2.9 à luz de seu contexto imediato? Ou melhor, como deveríamos interpretar (a partir da tradução que demos a Jó 2.9), por exemplo, Jó 2.10, quando Jó diz à sua esposa: "Como fala qualquer doida, assim falas tu; receberemos o bem de Deus, e não receberíamos o mal?". Bem, se a nossa tradução estiver correta em 2.9 e, portanto, "Sitis" abençoou Jó em vez de amaldiçoá-lo, logo, segue-se que no verso 10 Jó não condena a sua esposa por tê-lo instigado a "amaldiçoar" a Deus, mas sim chama a sua atenção por ela dar a entender com as suas palavras que não acreditava que ele sobreviveria àquela doença e a toda aquela situação (a perda dos animais, dos filhos etc). Neste sentido, então, Jó a adverte quanto ao fato de que eles ainda receberiam a bênção de Deus no futuro (ele diz: "receberemos o bem de Deus").

A favor de nosso ponto de vista podemos argumentar ainda que as palavras da esposa de Jó sugerem "um desejo sincero de ver Jó livre dos seus tormentos (pela morte)", uma vez que ela não parece ver "a possibilidade de recuperação da saúde [dele] e da restauração dos bens".[7] Essa hipótese parece ser bem razoável e também parece coadunar mais com a realidade, pois, quando passamos por momentos muito difíceis em nossas vidas (assim como Jó e a sua esposa passaram), é natural que um dos cônjuges, ou até mesmo os dois, façam um balanço negativo da realidade que estão enfrentando, chegando, inclusive, a desenhar um futuro sombrio pela frente. De qualquer forma, como deveríamos ver a esposa de Jó: como "bandida" ou como "mocinha"? Quem sabe, algum dia ainda saberemos a verdade...

Abraços,

Autor: Carlos Augusto Vailatti
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[1] BERGANT, Dianne & KARRIS, Robert J. (org). Comentário Bíblico. Vol.II. São Paulo, Edições Loyola, 1999, p.215.
[2] ANDERSEN, Francis I. Jó, Introdução e Comentário. São Paulo, Vida Nova/Mundo Cristão, 1989, pp.89,90.
[3] CHAMPLIN, R.N. O Antigo Testamento Interpretado: versículo por versículo. Vol.3. São Paulo, Hagnos, 2001, p.1871.
[4] Esta é a minha tradução pessoal do texto.
[5] HARRIS, R. Laird. (org). Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, Vida Nova, 1998, p.220.
[6] O texto sem negrito aparece apenas na Septuaginta. Já os textos em negrito são aqueles que têm o seu correspondente em hebraico. Essa tradução em português da Septuaginta encontra-se em: http://doaldofb.sites.uol.com.br/septuaginta.html.
[7] ANDERSEN, Francis I. Op.Cit., p.90.

8 comentários:

  1. Meu nome é José Nilton Li o artigo e foi muito proveitoso porque penso eu Amulher de Jó não estaria tão doida em ter a idéia de que Deus poderia ser amaldiçoado por seu esposo, não faz sentido!

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  2. Bom, como você escreveu no final, "Quem sabe algum dia ainda saberemos a verdade". Acredito que Moisés, se quisesse se referir a "amaldiçoar" ou "blasfemar", poderia ter usado na´ats (2 Sm 12.14) ou nâqab (Lv 24.11).

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Kharis kai eirene

    Prezado Carlos, cheguei a este blog por indicação de um outro blogueiro, João Paulo Mendes. Uma vez que escrevi um artigo a respeito da mulher de Ló (http://www.teologiaegraca.blogspot.com/)e estava/continuo sem tempo para responder a respeito da exegese de Jó 2.9 (abençoar/amaldiçoar), o referido coblogueirante indicou-me seu artigo. Colocarei um link no final do post recomendando os coblogueirantes que entrem em seu blog para ler o seu excelente artigo.

    Esdras Bentho

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  5. Caro Esdras,

    Hesed veShalom

    Seja sempre bem-vindo ao meu blog e obrigado pela recomendação.

    C a r l o s

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  6. É assim que penso, ensino e prego.
    Um homem não será respeitado e reverenciado sem que sua própria esposa o faça. Ainda mais numa época patriarcal.
    Uma família não pode ser exemplar sem uma boa esposa e mãe.

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  7. Olá, Lúcia,

    Obrigado pela sua visita. Sem dúvida, as mulheres foram muito importantes, tanto na época patriarcal, quanto nos dias de hoje. Concordo com você.

    Abraços

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  8. Olá Carlos
    Paz
    Foi ao postar parte da mensagem de meu pastor que acabei vindo visitar seu blog. Afinal as pessoas vivem a apedrejar muitos personagens bíblicos, sem observar que foram passíveis das mesmas paixões que nós.
    Acabei por escrever um poema sobre a mulher de Jó, levando em consideração os sentimentos mais humanos que pude ter,lembrar ou absorver da mensagem que ouvi em 2009.
    Aqui gostei de seu modo claro de expor sua opinião. O que em si é um elogio, já que a maioria dos textos que leio na internet sempre são superficiais, sem deixar claro o que é pensamento do escritor e conhecimento teológico.
    Boa semana
    Paz
    Elisabeth Lorena Alves

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