sábado, 21 de março de 2009

Amar a Deus, ao Próximo e a Si Mesmo

"E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos depende toda a lei e os profetas". (Mt 22.37-40).

Esse trecho do evangelho de Mateus está inserido dentro do contexto de um breve encontro que Jesus teve com os fariseus. Jesus, ao ser interrogado por um doutor da lei sobre qual era o grande mandamento da Lei (Mt 22.35,36), respondeu-lhe com o texto que destacamos acima.

A pergunta feita busca "indagar sobre a característica controladora ou valor básico segundo o qual o resto da Lei é compreendido".[1] Porém, para entendermos ainda melhor o que estava por trás desta questão, basta lembrarmos que, segundo a tradição judaica, a Torá continha ao todo 613 mandamentos, os quais estavam divididos entre 248 mandamentos positivos e 365 mandamentos negativos.[2] Sendo assim, qual desses numerosos mandamentos era o grande mandamento da Lei? Perceba, antes de qualquer coisa, que a intenção do fariseu ao fazer tal questionamento era "experimentar" a Jesus (cf. v.35). Acontece, porém, que a palavra usada aqui para "experimentar" é o termo grego peirazon, o qual, dentre outras coisas, significa: "desafiar, pôr em dúvida, mostrar desconfiança"[3] e ainda, "armar cilada".[4] Esse foi o tom da pergunta.

A resposta dada à pergunta é bastante interessante. Jesus responde ao fariseu, dizendo-lhe que Dt 6.5 (parte do Shemá Israel)[5] e Lv 19.18b, juntos, se constituem o grande mandamento da Lei. Aliás, como bem disse William Hendriksen:

"Esse duplo mandamento (amor por Deus e amor pelo próximo) é a estaca da [sobre a] qual pende toda a 'lei e os profetas'. Remova a estaca, e tudo está perdido, pois todo o Antigo Testamento, com seus mandamentos e alianças, profecias e promessas, tipos e cerimônias, convites e exortações, apontam para o amor de Deus que exige a reação favorável de amor em troca.[6]

Bem, em vista de tudo quanto foi dito até agora, uma coisa está bem clara: o binômio "amar a Deus/ao homem" é o âmago da Lei e do ensino de Cristo, segundo Ele próprio. Porém, creio que uma pergunta ainda deve ser feita aqui: este conceito de "amar a Deus e ao próximo" é um exclusivismo judaico-cristão, ou nós podemos encontrá-lo também em outras culturas? Ora, a fim de podermos responder a esta pergunta, temos que retroceder até à época da escrita dos livros de Deuteronômio e Levítico, uma vez que é destes livros que Jesus extrai a sua resposta ao fariseu, doutor da lei.

Estes dois livros bíblicos são as testemunhas mais antigas do cânon a fazer referência ao conceito de "amar a Deus e ao próximo". Mas, então, em que data tais livros foram escritos? Embora a resposta a esta pergunta não seja assim tão fácil de ser dada, todavia, nos arriscaremos a fornecê-la aqui. De acordo com a chamada Teoria da Hipótese Documentária, acredita-se que o Deuteronômio tenha sido escrito no VII século a.C. e que o Levítico (Escrito Sacerdotal) tenha sido redigido entre o período exílico e pós-exílico, ou seja, aproximadamente no VI século a.C.[7] É claro que tais redações devem refletir uma tradição oral muito mais antiga à da época de sua escrita. Todavia, é bom conservarmos tais datas em mente.

Saindo da literatura bíblica e indo para a extra-bíblica, tomamos conhecimento da existência de um texto assírio conhecido como Tratado de Assarhaddon com Príncipes Vassalos. Esse tratado foi descoberto em 672 a.C. em estado fragmentário, por ocasião da escavação do templo de Nabu, em Nimrud, Babilônia. No corpo deste tratado encontramos um mandamento impressionante, cujo conteúdo nos é bem familiar:

"Amarás Assurbanipal, o grande príncipe herdeiro, filho de Assarhaddon, rei da Assíria, como a ti mesmo".[8]

Como a descoberta deste texto data do VII século a.C., isto quer dizer que a sua redação deve ser mais antiga ainda. Em outras palavras, este texto que trata do amor que os súditos de Assurbanipal deveriam devotar para com o seu soberano pode ser tão antigo quanto ou ainda mais antigo do que os textos de Deuteronômio e Levítico. Você notou a semelhança que há entre esse Tratado Assírio e os textos de Dt 6.5 e Lv 19.18b? Será que foram os textos bíblicos que influenciaram o Tratado de Assarhaddon, ou, ao contrário, este último teria influenciado a redação dos primeiros? Bem, embora eu seja tentado a acreditar que nunca obteremos essa resposta com exatidão, porém, penso que devemos cogitar a hipótese de Dt 6.5 e Lv 19.18b refletirem o conceito de "contrato entre soberano e vassalo", o qual era muito comum naqueles tempos antigos.

É claro que, enquanto esse tipo de contrato (comum no Antigo Oriente Próximo) exigia uma forma de "amor" que era imposta pelo soberano, o amor a Deus ensinado por Cristo, por outro lado, além de ser fruto de nossa eterna gratidão a Ele, também "estabelece que Deus deve ser amado sem reservas e com toda a capacidade do ser". Além disso, "um homem não pode amar a Deus num sentido real sem amar também a seu próximo, feito como ele à imagem de Deus".[9]

De qualquer forma, ao analisar esse majestoso texto mateano, o seguinte pensamento me veio à mente. Este amor tríplice descrito por Mateus deve coexistir inseparavelmente, pois, caso contrário, será descaracterizado como tal. Mateus fala sobre as três vértices que compõem este triângulo. 1) "Amarás o Senhor teu Deus"; 2) "Amarás o teu próximo"; e 3) "Amarás (...) a ti mesmo". Este amor tríplice é simplesmente indispensável à nossa vida cristã. E isto é tão sério que, se esse amor tríplice não for vivido simultaneamente, então, teremos que rever tudo aquilo que entendemos ser cristianismo.

Aliás, para provar o que digo, pense no seguinte: se nós amarmos somente a Deus, mas deixarmos de amar ao próximo e a nós mesmos, seremos fa
náticos; se, por outro lado, amarmos somente ao próximo e deixarmos de amar a Deus e a nós mesmos, seremos humanistas; e, por fim, se amarmos somente a nós mesmos e deixarmos de amar a Deus e ao próximo, seremos egoístas. Você percebe agora porquê este amor tríplice deve ser vivido simultaneamente? Aqueles que "amam somente a Deus" se tornam tão fanáticos que chegam até mesmo ao ponto de promover ataques terroristas em nome dEle. Aqueles que "amam somente ao próximo" se tornam extremamente humanistas e, por isso, acabam se esquecendo de que o mundo não gira apenas em torno do homem. O homem é apenas uma parte do todo. Finalmente, aqueles que "amam somente a si mesmos" se convertem em verdadeiros ególatras. Aliás, não devemos confundir aqui "amor-próprio" e "auto-estima" com "egoísmo". Enquanto os primeiros são saudáveis, este último é extremamente pernicioso à vida cristã. Estes que amam somente a si mesmos se esquecem, da mesma forma, de que o mundo não gira em torno de seus "umbigos".

Bem, depois de toda esta reflexão, o meu sincero desejo é que este amor tríplice esteja presente de forma simultânea no seu coração.

No amor de Cristo,

Autor: Carlos Augusto Vailatti
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[1] OVERMAN, J. Andrew. O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo. São Paulo, Edições Loyola, 1997, p.90.
[2] COHN-SHERBOK, Dan. A Concise Encyclopedia of Judaism. Oxford, Oneworld Publications, 1998, pp.180,181.
[3] BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard. Diccionário Exegético del Nuevo Testamento. Vol.2. Salamanca, Ediciones Sígueme, 2002, p.863.
[4] Este mesmo verbo é usado em Mt 22.18 na questão sobre o "tributo a César". (Cf. Bíblia TEB. São Paulo, Edições Loyola, 1994, p.1902, nota w).
[5] Plummer assim comenta a citação de Dt 6.5 que Jesus usa em sua resposta ao fariseu: "Cristo remete o seu questionador para o texto com o qual todo o judeu daquele tempo estava bem familiarizado, pois ele tinha de recitá-lo duas vezes todo o dia". (Cf. PLUMMER, Alfred. An Exegetical Commentary on The Gospel According to St. Matthew. Grand Rapids, Baker Book House, 1982, p.308).
[6] HENDRIKSEN, William. Mateus. Vol.2. São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2001, p.432.
[7] HOMBURG, Klaus. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo, Editora Sinodal, 1981, p.41.
[8] BRIEND, Jacques, LEBRUN, René & PUECH, Émile. Tratados e Juramentos no Antigo Oriente Próximo.São Paulo, Paulus, 1998, p.85. Os itálicos são meus.
[9] TASKER, R. V. G. Mateus, introdução e comentário. São Paulo, Vida Nova/Mundo Cristão, 1991, p.168.

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