por Carlos Augusto Vailatti*
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O progresso do conhecimento científico ao longo da história tem sido
acompanhado por resultados tanto positivos quanto negativos. Se, por um
lado, os avanços da ciência contribuíram significativamente e
inquestionavelmente para a melhor qualidade de vida dos seres humanos em
geral, por outro lado, o desenvolvimento científico e tecnológico
também colaborou para a diminuição da busca do homem pelo sagrado (hoje,
em comparação com o passado, o homem recorre mais à ciência do que a
Deus para resolver os seus múltiplos problemas da vida) e, ao mesmo
tempo, ajudou a sacralizar a ciência e os seus iniciados. Desse modo, o
Século 18 viu a ciência como uma nova fonte de transcendência, o Século
19 a apontou como uma nova religião humanística e, por fim, o Século 20 a
promoveu ao status de uma nova religião.[i] Apesar da importância
da ciência por motivos óbvios, não se pode negar que toda essa atenção
demasiada devotada a ela em nossos dias também demonstra a audácia
escancarada e o espírito arrogante do homem ao louvar a si mesmo por
meio de suas conquistas tecnocientíficas. Tal antropocentrismo é deveras
perigoso, pois coloca no centro das atenções a frágil criatura e não o
Onipotente Criador.
E por falar em ciência, já faz algum tempo que esta defende a origem
estelar do ser humano, inflando ainda mais o seu ego, ao dizer, por
exemplo, que “todos nós, todas as criaturas do passado, presente e
futuro vieram do pó das estrelas”.[ii] Como se isso não bastasse, na Grécia Antiga, Sócrates disse que a palavra grega anthropos, “homem”, significava ‟aquele que ergue os olhos para aquilo que vê”, referindo-se à postura ereta única do ser humano.[iii] Contudo, essa postura ‟ereta” acompanhada do ato de ‟erguer os
olhos” pode facilmente nos trazer à memória a imagem de alguém que olha
para o outro ‟de cima para baixo” ou de forma ‟altiva”, ainda que este
sentido não seja pretendido pela definição socrática. Seja como for,
prefiro me voltar para o hebraico e para o latim quando penso sobre o
ser humano. A palavra hebraica para “homem” (’adam) é oriunda de ’adamâ, ‟terra, solo, chão”. Essa semelhança entre os vocábulos não é casual, mas intencional, uma vez que Deus criou o ‟homem” (’adam) a partir da matéria prima, a ‟terra” (’adamâ) (Gênesis 2:7). Além disso, a palavra latina para “homem” (homo) é derivada de humus, ‟terra” e, por isso, traz consigo a ideia de que o homem é um ‟ser terreno” ou ‟nascido da terra”.[iv] Aliás, o termo latino humilitas, ‟humildade, baixeza”, aponta para o fato de que ‟a humildade é coisa apegada ao humus, chão”.[v] Bem, depois de toda essa introdução etimológica, creio que este seja
um bom momento para refletirmos, mesmo que brevemente, sobre o papel e a
condição do homem diante do universo.
Acredito que os seguintes dados, longe de reduzirem o ser humano a um
mero amontoado de elementos químicos, nos serão úteis a fim de
conscientizar-nos sobre a nossa natureza efêmera. Em linhas gerais, a
composição química do corpo de um ser humano possui os seguintes
elementos químicos, acompanhados de seus respectivos percentuais:
Oxigênio (65%), Carbono (18,5%), Hidrogênio (9,5%), Nitrogênio (3,3%),
Fósforo (1%), Cálcio (0,5%), Potássio (0,4%), Enxofre (0,3%), Cloro
(0,2%), Sódio (0,2%), Magnésio (0,1%), Ferro (0,004%), Iodo (0,00004%) e
traços de Silicone, Flúor, Cobre, Manganês, Zinco, Selênio, Cobalto,
Molibdênio e Boro.[vi] Creio que cabe lembrar aqui que essas mesmas substâncias também são
encontradas na terra, lugar este de onde todos nós viemos e para onde um
dia inexoravelmente voltaremos.
Entretanto, caso esses dados ainda não sejam suficientemente
convincentes para fazer-nos descer do pináculo da nossa arrogância e do
cume da nossa altivez antropocêntrica, penso que as informações a seguir
também possam nos ajudar a fazê-lo. Creio que uma pessoa deveria pensar
sempre mil vezes antes de dizer a alguém: ‟Por um acaso, você sabe com quem
está falando?”. Gostaria de convidar aos ilustres formuladores dessa
pergunta à seguinte reflexão. Você é apenas um entre mais de 7 bilhões
de pessoas, as quais representam uma única espécie, a humana, que, por
sua vez, é somente uma espécie entre as cerca de 3 milhões de espécies
de seres vivos catalogados (entre aproximadamente 30 milhões de espécies
de seres vivos que devem existir ao todo!), espécie humana esta que
vive em um planeta, chamado Terra, o qual gira em torno de uma estrela, o
Sol, que, por sua vez, é apenas uma das cerca de 100 bilhões de
estrelas que compõem a nossa galáxia, a Via Láctea, a qual é tão-somente
uma das 200 bilhões de galáxias existentes no Universo.[vii] Em outras palavras, quando contemplamos a grandiosidade dos céus, da
lua e das estrelas, por exemplo, devemos compreender o quão pequeno
somos diante desse imenso universo (Salmo 8:3-4). Se nós, humanos, somos
a ‟coroa da criação”, por um lado, devemos nos lembrar, por outro, que
somos igualmente ‟pó e cinza” (Gênesis 18:27; Salmo 103:14). Sim, eu sei
muito bem com ‟quem” estou falando.
Nesse ponto, é importante definirmos o que queremos dizer aqui com o
termo ‟humildade”, o qual encabeça o título do presente artigo. Defino
‟humildade”, ainda que de forma subjetiva, como ‟a qualidade de ser
dependente de Deus e de mostrar respeito para com as outras pessoas”. [viii] Por que escolhi essa definição? Porque quando proclamamos a nossa
independência de Deus e a nossa superioridade em relação ao nosso
semelhante, agimos de forma arrogante e prepotente, comportamento este
não condizente com a nossa frágil, efêmera e passageira condição humana.
Jamais poderei me esquecer de que ‟os meus dias são mais velozes do que
a lançadeira do tecelão” (Jó 7:6), que os meus anos de vida são como um
‟conto ligeiro” (Salmo 90:9) e que todo ser humano é como ‟a erva”,
cuja formosura é como a beleza das ‟flores do campo”. Aliás, Isaías é
incisivo ao nos advertir que ‟seca-se a erva e caem as flores, soprando
nelas o hálito do Senhor”. Em seguida, o profeta nos explica essa dura
linguagem figurada, dizendo: ‟Na verdade, o povo é erva” (Isaías
40:6-7).
O fato é que vivemos numa cultura arrogantemente antropocêntrica, mas o
ritmo frenético e agitado da vida que levamos embaça o nosso
discernimento e embota a nossa consciência, impedindo-nos de enxergar o
óbvio. Somos presunçosos, quando planejamos nossas viagens a negócios
para um futuro (incerto!) e quando chegamos até mesmo a calcular o
suposto lucro que obteremos em nossas transações comerciais (Tiago
4:13-16). Somos estupidamente arrogantes, quando destruímos o nosso
planeta e o nosso meio ambiente, como se fôssemos os seus únicos
inquilinos, em vez de zelarmos por ele e pela sua biodiversidade como
usuários compartilhantes (Gênesis 1:26-30). Somos soberbos, quando
pretendemos prever com exatidão o clima e a temperatura dos próximos
dias ou semanas, previsão esta que, muitas vezes, se mostra equivocada
(Lucas 12:54-56). Somos miseravelmente orgulhosos, quando tratamos o
nosso próximo com desprezo e aspereza, em vez de tratá-lo com amor e
respeito (Romanos 13:8; Tiago 3:13). Somos altivos, quando nos achamos
mais santos ou mais espirituais do que os outros (Isaías 65:5; Lucas
18:9-14). Somos prepotentes, quando imaginamos que sabemos alguma coisa
(1 Coríntios 8:2). Somos arrogantes, quando queremos prever o
imprevisível dia de amanhã (Tiago 4:14a). Enfim, agimos com grande
altivez, quando proclamamos a nossa independência de Deus e de Cristo
(Salmo 14:1; 53:1; João 15:5).
Em suma, diante de um mundo orgulhoso, soberbo e arrogante como o
nosso, urge trazermos sempre à nossa memória esses três importantes
elementos: a infinita grandeza de Deus, a diminuta e efêmera existência
humana e o estado de co-igualdade com o nosso semelhante. Uma vez que
conhecemos tanto a nossa origem quanto o nosso destino, isto é, o ‟pó da
terra” (Gênesis 3:19), o lema da nossa vida deveria ser sempre esse:
‟Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao teu nome dá glória!” (Salmo
115:1), tendo plena consciência de que ‟Deus resiste aos soberbos, mas
dá graça aos humildes” (Tiago 4:6).
[Este texto foi publicado originalmente no site do Seminário Teológico Evangélico do Betel Brasileiro: http://betelbrasileiro.web921.uni5.net/online/geral/artigos/humildade-um-valor-em-falta-em-nossos-dias].
*Doutorando em Estudos Judaicos e Árabes, com concentração em Estudos Judaicos, pela Universidade de São Paulo (USP). Professor de diversas disciplinas teológicas no Betel Brasileiro.
[ii] MAQUIRE, Daniel C. Sacred Energies: When the World’s Religions Sit Down to Talk About the Future of Human Life and the Plight of This Planet. Minneapolis, Augsburg Fortress, 2000, p.82.
[iii] Do grego ho anathron ha opopen. Cf. Platão. Cratylus: A Dialogue. [Trad.]. Benjamin Jowett. Rockville, Wildside Press LLC, 2010, p.86. Veja ainda: EVERSON, Stephen. [Ed.]. Language. Cambridge, Cambridge University Press, 1994, p.168.
[iv] ROBERTSON, John G. [Ed.]. Robertson's Words For a Modern Age: A Cross Reference of Latin and Greek Combining Elements. Brunswick, Senior Scribe Publications, 1991, p.70.
[v] SILVA, Deonísio da. De Onde Vêm as Palavras: Frases e Curiosidades da Língua Portuguesa. São Paulo, Mandarim, 1997, p.143.
[vi] STOCKSLAGER, Jaime L., CHELI, Raphe & HAWORTH, Kevin. [Eds.]. Anatomy and Physiology. Philadelphia, Lippincott Williams & Wilkins, 2002, p.18.
[vii] Adaptado de: CORTELLA, Mario Sergio. Qual é a Tua Obra? Inquietações Propositivas Sobre Gestão, Liderança e Ética. Petrópolis, Vozes, 2011, pp.23-27.
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