Porém, é curioso notar que o apóstolo Paulo, por exemplo, e em certo sentido, parece ir na contramão de todo este “sistema alienante” que se diz ser cristão. Sabe-se que o apóstolo Paulo, várias vezes, menciona ditos ou pensamentos pagãos (ou “mundanos”, se preferir) em suas epístolas. No seu famoso discurso feito no Areópago de Atenas, por exemplo, Paulo cita em Atos 17.28b uma passagem do poeta grego Arato (315/310-240 a.C.)[1], a qual também ocorre na oração que Cleantes (331/330-225/220 a.C.)[2] dirige ao deus romano Júpiter, em seu Hino a Júpiter: “Pois somos também sua geração”. Além disso, o apóstolo cita o filósofo, poeta e místico cretense Epimênides (c.600 a.C.),[3] quando diz em Atos 17.28a: “Nele vivemos, e nos movemos e existimos”. Em 1 Coríntios 12.14-26, ao falar sobre a importância dos vários membros do corpo comparando-os ao Corpo de Cristo, a Igreja, Paulo utiliza uma comparação que já é bem conhecida naquela época. O apóstolo parece tirar o seu discurso da Fábula da Rebelião dos Membros contra o Estômago, a qual foi utilizada pelo cônsul romano Menênio Agripa (VI século a.C.) em um discurso político.[4] Já em 1 Coríntios 15.32b, Paulo menciona duas sentenças do poeta grego Menandro (c.342-291 a.C.): “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”[5], bem como, menciona em 1 Coríntios 15.33 um conhecido provérbio popular: “as más conversações corrompem os bons costumes”. Em Tito 1.12, Paulo novamente recorre ao já citado poeta cretense Epimênides (a quem ele chama de “profeta”!), a fim de caracterizar o gênio dos habitantes de Creta: “Os cretenses são sempre mentirosos, bestas ruins, ventres preguiçosos”.[6] Esses poucos, mas importantes exemplos, servem para nos mostrar que Paulo também usou fontes profanas (“mundanas”) em seus escritos.
A constatação desse fato me leva a pensar na nossa tamanha “hipocrisia cristã” contemporânea. Explico: Dizemos que não podemos ouvir “músicas do mundo”, como, por exemplo, Como é Grande o meu Amor por Você, de Roberto Carlos, mas podemos nos consultar e inclusive fazer cirurgias com “médicos do mundo”, isto é, não-cristãos (é claro, como cuidar da saúde é o mais importante, então, não importa a fé do médico que me atende, desde que ele me ajude a ficar curado!). Dizemos, muitas vezes, que não podemos nos divertir com certas “diversões do mundo”, tais como: teatros, cinemas, parques de diversão, festas juninas etc, mas não estamos nem um pouco preocupados com a fé do juiz que irá julgar um eventual processo nosso que esteja na Justiça (desde que a justiça seja feita, pouco nos importa qual é o “sistema de crenças” desse juiz!). Declaramos que não podemos ler certas “literaturas do mundo”, como A Origem das Espécies, de Charles Darwin, mas ficamos com a nossa consciência tranqüila quando, por exemplo, um mecânico, pedreiro, policial, engenheiro ou qualquer outro “profissional do mundo” nos ajuda a resolver os nossos problemas.
Ora, para ser bastante franco, creio que seja momento de voltarmos a refletir sobre uma das doutrinas teológicas mais importantes das Igrejas Reformadas, ou seja, a doutrina da “Graça Comum”. A Graça Comum é aquela graça que é estendida a todas as pessoas através da providência geral de Deus como, por exemplo, sua provisão do brilho do sol ou da chuva que é para todos.[7]
É a Graça Comum que permite a um não-cristão ser um bom pai, um excelente profissional, um criativo compositor, um inteligente advogado etc, independentemente da fé que ele professa! Sendo assim, temos que tomar bastante cuidado para não vivermos alienados do mundo e da realidade que nos cerca, bem como, temos que tomar cuidado para não demonizarmos tudo aquilo que tachamos de “mundano” e “profano”. Temos que parar com essa “Síndrome de Crente ET” (“Não sou deste mundo”) e entendermos, de uma vez por todas, que ao interceder por nós há quase dois mil anos atrás, Jesus orou assim ao Pai: “Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal” (Jo 17.15). É claro que não estou querendo dizer com isso que devamos aceitar tudo aquilo que o mundo nos oferece. Nada disso! Tudo aquilo que se constitui em pecado sempre continuará a ser pecado diante de Deus e, portanto, deverá ser evitado por nós. Porém, não podemos continuar a ser hipócritas, vendo ou não vendo “pecado” apenas naquelas situações que nos são convenientes. Há que se entender que em meio a toda a humanidade (e isso inclui os não-cristãos) nós podemos encontrar exemplos de pensamentos e comportamentos corretos e verdadeiros e que, sendo assim, são dignos de serem apreciados e até mesmo imitados. Dito de outra forma, temos que aprender a aceitar o fato de que também há beleza, inteligência e outros inúmeros rastros de Deus “fora das paredes da Igreja”. Infelizmente, porém, há muitos crentes que insistem em viver uma vida alienada, como se tivessem sido abduzidos por alguma nave extraterrestre para alguma galáxia distante. Algumas pessoas parecem se comportar como se fossem habitantes de Saturno, Mercúrio, ou até mesmo, habitantes do lendário planeta Naboo, de Star Wars II. Tudo isso parece ser muito engraçado, mas, na verdade, é muito triste de se ver.
Diante disso tudo, é necessário perguntar: “de que planeta você é?”. Bem, se você é do planeta Terra (e eu desconfio que seja), então é importante refletirmos sobre a maneira pela qual temos enxergado o nosso mundo. Em outras palavras, a nossa cosmovisão cristã não pode continuar sendo excludente, alienante, preconceituosa e, sobretudo, demonizadora, quando o objeto de nossas reflexões é o mundo em que vivemos e a realidade existencial que nos rodeia.
Ora, ao Deus do Universo sejam a glória e o louvor para sempre!
Em Cristo,
Autor: Carlos Augusto Vailatti
[1] JOHNSON, Luke Timothy. The Acts of the Apostles. Collegeville, The Liturgical Press, 1992, p.316.
[2] GRAY, James Comper & ADAMS, George M. Gray and Adams Bible Commentary.Vol.IV. [Matthew – Acts]. Grand Rapids, Zondervan Publishing House, S.d., p.663, note h.
[3] JOHNSON, Luke Timothy. Op.Cit., p.316.
[4] Cf. LÍVIO, Tito. Ab Urbe Condita Libri. [História de Roma]. Vol.I. São Paulo, Editora Paumape S.A., 1989, pp. 149,150.
[5] ROHDEN, Huberto. Paulo de Tarso. São Paulo, Martin Claret Editores Ltda, 1999, p.88.
[6] KELLY, J. N. D. Epístolas Pastorais, introdução e comentário. São Paulo, Vida Nova/Mundo Cristão, 1991, p.213.
[7] ERICKSON, Millard J. Conciso Dicionário de Teologia Cristã. Rio de Janeiro, Juerp, 1995, p.75.
Interessante o dito de Paulo em 1 Co 15.32: “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. Mas Paulo cita Is 22.13, não Menandro. Bom, é bem difícil encontrar um texto de Menandro hoje em dia. Mas o místico Huberto Rohden pesquisou e achou. Então, viva! Menandro soube das palavras de Isaías que foi, afinal, um dos maiores escritores do mundo antigo.
ResponderExcluirVaillati, o seu texto foi muito bom para mim. Fui bastante edificado. Obrigado.